sábado, 13 de dezembro de 2008

Arte/Texto: Leonardo Palma

O desejo como criação e não como carência
Leonardo Retamoso Palma, 41, pesquisador independente.
[Revista Global Brasil, Rede Universidade Nômade, Coletivo Attraverso]

"Refiro-me à multidão de festa,
à multidão de alegria, à multidão espontaneamente amorosa,
embriagada apenas pelo prazer de se reunir por se reunir."
(Gabriel Tarde)

Começo com o tema da "banalização do corpo". Essa expressão parece tomar como referência os fenômenos contemporâneos de hiper-exposição e da hiper-expressividade. Nos fala porém de duas coisas bem distintas. Por um lado, de algo que usando a expressão mais adequada é a contemporânea banalização da exploração comercial/mercantil não só do corpo, mas de suas potências, do desejo, da libido, do sexo, dos prazeres, etc. Por outro, fala do que torna isso possível, um modelo de negócios e de produção de valor (mercantil, monetário, financeiro, etc.) cujo critério é a raridade, espontânea ou artificialmente produzida.

A aceleração contínua dos ritmos produtivos e a promoção da competitividade subtraem tempo de atenção e cuidado e desviam nossas energias em outras direções. Cada vez mais as crianças também estão sendo expostas e sujeitadas a essa aceleração e essa demanda, como adequação a uma suposta produtividade futura.

Somos demandados ao ponto de perdermos a dimensão erótica do outro, a empatia. Como falou Franco Berardi comentando seu último livro "Generación Pós-Alfa: Patologías en el semiocapitalismo" (Buenos Aires: Tinta Limón, 2007): "... já não somos capazes de prestarmos atenção em nós mesmos. Mas tampouco temos tempo suficiente para prestar atenção naqueles que vivem ao nosso redor", "A deserotização é o pior desastre que a humanidade pode conhecer, porque o fundamento da ética não está nas normas universais da razão prática, mas na percepção do corpo do outro como continuação sensível de meu corpo. (...) a consciência do fato de que teu prazer é o meu prazer e teu sofrimento é o meu sofrimento. A empatia." [no jornal argentino Página 12, em 12 de novembro de 2007].

As práticas de criação artística na contemporaneidade estão atravessadas, em grande medida, por essas inquietações. Muito da atual produção estética e artística contemporânea vem exatamente propondo/experimentando a problematização disso tudo. Em uma sala de exposição ou em qualquer outro lugar de intervenção artística, é comum nos deparamos não com a raridade, mas com o excesso, de experiências com o tempo de fruição, tempo de atenção e afetação, experimentações essas com o corpo em situação. As palavras multiplicidade e proliferação ganham pertinência. A expressão criativa irredutível à representação, assim, propõe a experiência com o corpo, não a substituição simbólica e representativa que faria das potências algo irrealizável e reféns da raridade, mobilizáveis para servirem à banalização da exploração comercial/mercantil do corpo e de suas potências. Vejamos, é pós-salas de exposição e constituição do comum, do compartilhamento que a dimensão mercantil intervém na criação artística, exatamente para retirá-la dos espaços comuns e levá-las para os lugares especiais de apropriação privada e garantir a harmonização do que foi perturbado pela criação estética e sua exposição/apresentação.

A normalização das castrações, interdições e proibições que as morais repressivas nos deixaram de herança, e que muito contribuíram para o esquecimento do corpo e de suas potências, são problematizadas, postas em questão pelas criações e nossos encontros com elas.

Fossem banais corpo, sexo, gozo, libido, desejo, e não haveria o desconforto. Não sabemos ainda o que pode um corpo, já se disse e repetiu tantas vezes. Não há empatia em excesso, prazer em excesso, gozo em excesso, sexo em excesso. Estamos nos começos disso tudo, de muitos modos. E é a riqueza, a exuberância, esse excesso que afronta a raridade. É esse excesso que pode retirar o oxigênio da banalização da exploração comercial/mercantil do corpo e de suas potências. A raridade, é o que dá oxigênio para a banalização da exploração comercial/mercantil. E tudo isso que ainda não sabemos sobre o que pode um corpo, é pesquisa aberta, criação e invenção. Não deveríamos fechar esse caminho por puro medo.

Uma observação. O esforço do poder, enquanto dispositivos e forças ativas tentando impor uma ordem de normalizações, no mínimo desde a abertura revolucionária do emblemático ano de 1968, tem sido o de separar a "crítica social" da "crítica artista", jamais vendo ou deixando ver uma dessas dimensões na outra, e afirmando a incompatibilidade de sua ocorrência simultânea. Sempre impondo a separação, tenta retirar a expressão artística dos lugares de contágio e incidência, sempre propondo lugares especiais e neutros, sempre inviabilizando o compartilhamento e logo, preservando as normalizações: o preconceito com o corpo.


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